domingo, 23 de maio de 2010

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES – Episódio 65


A ENTRADA ATRIBULADA DO VAPOR ESPANHOL “GLORIA” NA BARRA




Relato textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, respeitante ao incidente ocorrido com o vapor Espanhol GLORIA na barra do Douro e do qual foi protagonista.

«A 26/03/1931, pelas 13h30, na paragem dos Pilotos apanhei o carro eléctrico da linha 1, com destino a Leça da Palmeira, juntamente com três colegas e um praticante. Chegados à paragem do castelo de Leça, dirigimo-nos para o cais do Marégrafo e embarcamos na lancha de pilotar P1, tendo sido transportados para bordo dos quatro vapores, que se encontravam fundeados ao largo da costa, aguardando piloto e água para demandar a barra do Douro e assim teve de ser, visto aquela barra não se encontrar em condições de permitir a saída da lancha P4, devido às águas de cheia, vento de Oés-Sudoeste e algum mar a vir para cima.

Chegada a lancha fora do porto de Leixões, saltaram para os vapores Ingleses LYMINGE, o piloto José Pinto Ribeiro acompanhado do praticante António Duarte e para o TEECO, o piloto António Gonçalves dos Reis, seguindo-se para o petroleiro Português SUNFLOWER ao serviço da Vacuum Oil, o piloto Francisco Piedade e eu embarquei no Espanhol GLORIA, de 95m/ 2.142tb, bastante antigo e degradado, sendo mesmo demorado de leme e de máquina ou seja o de maior comprimento e o mais fraco de manobra dos quatro vapores.

Às 16h00 dei ordem para suspender o ferro e como era o vapor de menor calado, estava em lastro, vinha carregar toros de pinho para as minas de carvão de Gales, aproximei-me e fiquei a pairar por fora da rebentação, a uns trezentos metros da barra, apitando a comunicar para terra o calado de água de 12 pés, aguardando o sinal de bandeiras para me fazer à barra. Às 17h00 foi içado o sinal de 16 pés e balão no topo, ou seja só para vapores assistidos por rebocador à proa.

O TEECO, auxiliado pelo LUSITÂNIA, foi o primeiro a passar a barra sem qualquer percalço. Aquele mesmo rebocador, que largara o TEECO na Cantareira, sai a barra e vai pegar no SUNFLOWER e estando o meu vapor de proa à barra, tive de o desviar do enfiamento fazendo marcha à ré, a fim de dar passagem àquele petroleiro, que já seguia a caminho da barra. Logo, que ele entrou, foi arriado o sinal de bandeiras do seu calado de 14 pés. Então, peguei no manípulo da sirene e toquei algumas vezes o sinal de 12 pés, relativo ao calado do meu vapor, para que o piloto-mor se decidisse pela entrada, pois não estava nada interessado em passar a noite a bordo, e ainda para mais com o tempo e o mar a deteriorar-se.

No cais do Marégrafo viam-se os pilotos em reunião de consulta e então a maioria optou pela entrada do GLÓRIA, pelo que foi içado nos mastros do pontal da Cantareira e do castelo da Foz, o grupo de bandeiras relativo ao seu calado e sendo assim, disse ao capitão, que já íamos entrar, além de o prevenir sobre o estado da barra, apertada e com bastante corrente de água de cima, pelo que à roda do leme convinha estar um timoneiro experimentado e muita atenção à máquina, visto o vapor ser demorado de leme e de pouca marcha. Disse-lhe também para avisar o seu imediato e o pessoal da proa para estar atento às vozes de comando dadas da ponte, além de ter os ferros prontos a largar e a desmanilhar, até porque se ia entrar sem auxílio de rebocador, e a ondulação continuava a crescer e a quebrar pela proa perigosamente. Eu e o capitão, que tomou conta do leme, estávamos bastante perplexos e incomodados por não nos terem mandado um rebocador mas como é sabido o piloto da barra não se pode recusar a demandar a barra, seja em que circunstâncias forem, salvo se o capitão assim o decidir, mas só por escrito.

Fiz o enfiamento à barra com a marca das Três Orelhas entre a marca do Anjo e o farolim da Cantareira. O vapor já ia a navegar para a barra riscando na vaga alta a partir, e desgovernava bastante, pelo que roguei à Nossa Senhora da Lapa, que nos protegesse. Ao chegar junto da bóia da ponta do Dente, via-se bastante escarcéu, próprio da corrente de cima, e entretanto o vapor guinou um pouco a bombordo e eu disse ao capitão para aguentar leme para estibordo. O vapor tomando o gosto à corrente de água de cima por bombordo, mete a proa a Sueste e eu reparo, que vai sobre a restinga do Cabedelo. Gritei para o capitão, leme todo a bombordo e toda a força avante mas o vapor não endireitava ao canal. O capitão que nunca tinha vindo ao rio Douro, e parecia já estar a ficar em pânico, e apesar de eu lhe incutir calma, exclamava “esta barra é mesmo perigosa!” Então eu disse para comigo, nem que o GLORIA fosse bater na restinga, nem largava o ferro, nem mandava andar à ré. Logo a seguir obedeceu ao leme a bombordo e vai de través na direcção do enrocamento do cais Velho, a Norte. Mando meter leme a estibordo mas o vapor estava a obedecer muito mal e eu a ver o vapor já encalhado ou todo arrombado avante e sem ferros, a sair a barra tentando alcançar o porto de Leixões, a meter-se de proa e o hélice a ficar fora de água, com o vento já a rodar forte para Noroeste e a maresia a recrudescer, e já com a escuridão da noite. Seria o fim!

No cais Velho, o piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, profissional bastante conhecedor, gesticulava para eu mandar largar o ferro e eu gritei para a proa para não o lançar já. Quando calculei, que o deveria fazer ordenei para largar o ferro de estibordo, e espaçadamente deixar correr a amarra, para não partir e força toda à ré. O vapor estava com bastante dificuldade em endireitar ao canal e quando ficou de proa acima, mandei desmanilhar a amarra e deixei-a por mão, a fim de evitar mais complicações, seguindo rio acima a governar, continuamente muito mal até alcançar o lugar de Santo António do Vale da Piedade, frente ao cais das Pedras, Massarelos, onde ficou amarrado com o ferro de bombordo e na falta do ferro de estibordo perdido na barra, ficou com um ancorote dos pilotos, reforço de cabos estabelecidos para terra e ainda um ancorote dos pilotos espiado pela popa para Noroeste, sem mais novidade. O LYMINGE permaneceu fora da barra, pilotado, aguardando entrada para o dia seguinte, devido às condições de mar e vento se terem deteriorado.

À chegada à Cantareira, à corporação de pilotos, fui elogiado pelo piloto-mor e pelos meus colegas ainda lá presentes, pelas manobras executadas na barra, o que também me fora enaltecido pelo capitão, quando da minha retirada de bordo.



Naquele momento, que o vapor ia de través sobre o cais Velho, ficando mesmo atravessado de proa a Norte, veio-me à mente o fatídico naufrágio do vapor Alemão DEISTER, ocorrido dois anos antes, no qual perdera a vida o meu malogrado colega Jacinto José Pereira e só por muita sorte não fui eu a vitima, porque o vapor Italiano DORIDE, sob a minha orientação, que deveria ter entrado primeiro, ficara retido na bacia do porto de Leixões com voltas nas amarras, tendo o vapor Alemão, que eu pilotara de entrada na sua primeira escala ao rio Douro e que me pareceu de razoável manobralidade, todavia as águas da barra sempre foram muito traiçoeiras e perigosas e não se compadecem com isso, tomado a dianteira e rumando à barra, acabou por a cruzar, sofrendo de inicio um acidente mais grave do que o do GLORIA, que eu felizmente e com a Graça de Deus conseguira evitar».

GLORIA – 95m/2.142tb/10nós; 01/1896 entregue pelo estaleiro Wm. Gray & Co., West Hartlepool, como NANETTE ao armador Pyman Steamship Co, Ltd (G. Pyman & Co.), West Hartlepool; 1912 GLORIA, F. de Abasolo, Espanha; 02/12/1933 o GLORIA que alguns anos antes, sob o nome de NANETTE, cruzava com bastante regularidade a barra do Douro, naufragou na posição 52.36N – 05.29W, próximo da costa de Cardigan, Gales, tendo os seus 26 tripulantes sido resgatados pelo vapor Inglês DEEBANK, que os conduziu para Liverpool, seu porto de destino.

DEEBANK – 133m/5060tb/12nós; 06/1929 entregue pelo estaleiro Workman Clark, Ltd., Belfast, ao armador Bank Line, Ltd., gestor A. Weir & Co., Glasgow; 1955 DEELOCK, Transportes Marítimos Atlântida SA., Panamá, gestor Wheelock Marden & Co.Ltd., Hong Kong: 1967 ZUIMEI MARU, Maeda Kisen, Japão; 02/1971 entrava em Onomichi, Japão, para desmantelamento.


DEEBANK / (c) Photoship Co., UK - autor desconhecido /.


BRITISH STEAMER SAVES CREW OF SINKING STEAMER

Fishguard, Wales, Dec.3.1933

The Thrilling rescue of the 26 members of the crew of the Spanish steamer GLORIA was effected yesterday by the British steamer DEEBANK when the storm-battered GLORIA almost at sinking in heavy seas near Cardingan coast.

The DEEBANK went to the Spanyards’ aid when the GLORIA had two holds full of water and was reported the engine room of the distressed steamer was flooded.

Rescue of 10 members of the GLORIA’s crew was first reported.

With the greatest difficulty, the work was continued and finally the whole crew was safely transferred.

Carrying all the rescued seamen, the DEEBANK proceeded to Liverpool.

Last advises said the GLORIA was in a sinking condition.

«THE GAZETTE, Montreal, Monday, Dec.4.1933»


Fontes: José Fernandes Amaro Junior; Imprensa Diária, Miramar Ship Index: Photoship Co., UK

(continua)

Rui Amaro